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Mais de 14 mil famílias foram despejadas durante a pandemia no Brasil

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E outras 84 mil famílias estão ameaçadas de remoção durante a pandemia. Entenda as complexidades desse problema social e como a luta por terra no país é histórica

Por: Isabela Alves – Observatório do Terceiro Setor

Desde o início da pandemia, em março de 2020, até junho deste ano, 14.301 famílias foram despejadas no Brasil.

São Paulo foi o estado com o maior número de remoções (3.907), seguido do Amazonas (3.028), Pernambuco (1.325) e Rio de Janeiro (1.042). Os dados são de um levantamento produzido pela Campanha Despejo Zero.

O levantamento também mostra que 84.092 famílias estão ameaçadas de remoção durante a pandemia. Foram registrados, ainda, 54 casos de suspensão. Isso significa que a pressão popular e os movimentos sociais impediram o despejo de 7.385 famílias durante este período.

O direito à moradia foi incluído como direito constitucional apenas no ano de 2000, através da emenda de n. 26. Com a mudança, a moradia foi reconhecida como um direito humano fundamental e de caráter imediato. Mesmo assim, milhares de brasileiros seguem sem acesso a uma moradia digna.

Um direito fundamental que está sendo violado

Foto: Juliana Castro/Correio Braziliense

Desde o início da pandemia de Covid-19, uma das principais recomendações é permanecer em casa o máximo possível. Mas muita gente no Brasil não tem essa opção.

“Essas famílias estão ainda mais vulneráveis e expostas à morte”, afirma Margareth Matiko Uemura, arquiteta urbanista, coordenadora do Instituto Pólis e membro do BR Cidades.

A especialista afirma que o Estatuto da Cidade é o documento que regulamenta o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, assim como o equilíbrio ambiental.

De acordo com a publicação, todas as regiões do país precisam de um plano habitacional para garantir moradia a todas as famílias, principalmente os locais onde existem mais de 20 mil habitantes.

O déficit de moradia não representa só a condição das pessoas que vivem em situação de rua, mas também daquelas que pagam aluguéis muito altos diante da sua renda ou moram em locais precários e insalubres, como as favelas ou as palafitas, por exemplo.

“Os despejos sempre aconteceram no Brasil e eles são feitos através de medidas judiciais ou pelos Governos Estaduais e Municipais. O que estamos vendo é um desmonte das políticas públicas. Em São Paulo, por exemplo, também houve a extinção da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU)”, diz Uemura.

Com a pandemia, muitas pessoas perderam os seus empregos, o que impulsionou a crise habitacional do país, já que muitos não tiveram condições de pagar o aluguel ou recursos para financiar a casa própria.

Além disso, muitas famílias não conseguiram fazer o distanciamento social dentro da própria moradia, já que 11,5 milhões de brasileiros moram em casas superlotadas. Isso significa que essas famílias vivem em casas com mais de três pessoas por dormitório.

“Muitas famílias vivem de maneira precária, mas elas têm um teto. Quando o Estado e o Judiciário realizam os despejos, as colocam em vulnerabilidade. É necessário uma política habitacional estruturada para atender a diversidade do deficit habitacional no país”, destaca Uemura.

O despejo é um problema mais complexo do que parece

Imagem: Projeto Colabora

O despejo é um fenômeno que atinge diversos países, não apenas o Brasil. “As grandes corporações se beneficiam deste sistema. A falta de moradia não é um problema isolado, mas simboliza a privação de outros direitos, como o acesso à educação e alimentos. Grupos determinados são mais atingidos por essa violação, como a população negra, mulheres e crianças”, afirma Guilherme Lobo, pesquisador do Lab Cidade e membro do Observatório de Remoções.

Além disso, muitas remoções ocorrem por conta de projetos urbanos excludentes, que pretendem criar habitações para classes mais altas do que a dos moradores do território.

Segundo Lobo, o Governo também não enxerga esse problema com seriedade e não dá prioridade a ele.

A Justiça também criminaliza as ocupações que foram construídas nas favelas por serem “invasões”, quando na realidade muitos não tiveram outra alternativa.

“Os efeitos da crise são decisivos. Com o desemprego, não se consegue pagar as contas e as novas ocupações estão cada vez mais frágeis, o que gera novos despejos. Eles vivem em transitoriedade permanente, já que com a mudança as crianças saem da escola e as famílias ficam expostas”, declara.

Para ele, é necessário que a revisão do Plano Diretor na cidade de São Paulo seja realizada de forma participativa para que os terrenos realizem a sua função social. Há terrenos que não estão construídos ou estão vazios, sem prestar um papel para a sociedade.

Com o passar do tempo, o terreno se torna mais valorizado por conta da sua localização e o proprietário acaba o vendendo por um preço mais alto do que comprou. Essa ação é chamada de especulação urbana, já que os proprietários estão ganhando dinheiro através do investimento público.

O Lab Cidade faz o mapeamento de despejos desde 2012 para enfrentar a invisibilidade deste problema. “Ninguém sabe dessas situações a não ser que haja repercussão na mídia. Os números registrados são menores que a realidade”, afirma.

Os registros são feitos através de denúncias e clipping de notícias. Em São Paulo, pelo menos 354 famílias foram removidas das suas casas no primeiro semestre deste ano, justamente no momento de crescimento da chamada segunda onda da pandemia. E existem mais 8.463 famílias ameaçadas de remoção.

“A situação é dramática e vemos um grande descaso com a vida. Os governos têm se omitido. Isso já é uma decisão”, afirma Lobo.

Atualmente, o Senado aprovou Projeto de Lei (PL) 827/2020, que visa proibir o despejo ou desocupação de imóveis até 31 de dezembro de 2021 em razão da emergência da crise pandêmica. Agora, depende da aprovação do Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido).

A Assembleia Legislativa de São Paulo também aprovou PL 146/2020 que também suspende os despejos na pandemia. O projeto foi vetado pelo Governador João Dória (PSDB) na sexta-feira (29).

A luta por terra no Brasil é histórica

Imagem: Domínio Público

A luta por terra no Brasil vem desde o período da abolição da escravidão, quando não houve demarcação de terra e nem indenização para os escravizados.

No dia 26 de janeiro de 1893, houve a demolição do Cortiço Cabeça de Porco, no Rio de Janeiro, o maior cortiço da história do Rio.

Além disso, como é retratado no documentário ‘Guerras do Brasil’, da Netflix, houve outros eventos históricos que marcaram a história do país, como a Guerra do Paraguai (1864-1870), Guerra de Canudos (1896-1897) e até hoje existem reivindicações para a demarcação de terra pelos povos originários.

Na história recente, episódios marcantes que devem ser lembrados foram a remoção dos ocupantes do Setor Parque Oeste Industrial, em 2005, que resultou na morte de duas pessoas, 12 feridos e mais de 800 detidos.

Já na desocupação do Pinheirinho, que ocorreu em São José dos Campos em 2012, não houve a confirmação oficial sobre o número de mortes ou de feridos, mas a subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) da Cidade relatou que havia até crianças entre os mortos.

“Vivemos em uma sociedade conservadora com uma cultura patrimonialista. Quem manda nos meios de comunicação são os proprietários de terra e os ‘heróis’ retratados nos livros de história e nos monumentos são os bandeirantes”, afirma Benedito Roberto Barbosa, coordenador da Central de Movimentos Populares e Articulador da Campanha Despejo Zero.

Segundo o ativista, que também é conhecido como Dito, é preciso compreender a exploração dos povos brasileiros e entender que há outro caminho.

Em 2020, a Campanha Despejo Zero passou a mapear os casos de despejo durante a pandemia e está na linha de frente para as reivindicações contra as remoções.

“A construção do pensamento crítico está sendo negada e vozes estão sendo silenciadas. Precisamos lutar juntos em prol desta causa que é do interesse de todos”, conclui.


REFERÊNCIAS:

Livro ‘Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças’, de Raquel Rolnik.

Artigo ‘Despossessão, violências e a potência transformadora: um olhar interseccional sobre as remoções’, de Larissa Lacerda, Marina Harkot, Paula Freire Santoro, Isabella Berloffa Alho e Gisele Brito.

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