sexta-feira, novembro 22, 2024
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OPNIÃO: IMUNIDADES PARLAMENTARES, LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO E IGNORÂNCIA HUMANA

Por José Durval de Lemos Lins Filho

Recentemente, o deputado estadual pelo Ceará André Fernandes (Republicanos) foi preso no Distrito de Porto de Galinhas, em Ipojuca (PE), em razão de sua recusa em observar as restrições alusivas às medidas sanitárias impostas pelo governador do estado de Pernambuco no contexto do combate à pandemia da Covid-19. Ao ser instado a cumprir a norma pelos guardas municipais, o parlamentar teria ignorado e debochado das orientações, tendo alegado uma suposta imunidade parlamentar e ainda o seu direito de ir e vir para se recusar a usar a máscara e prosseguir tomando banho de mar.

Evidentemente, foi conduzido até a delegacia de polícia local, onde se iniciou procedimento para aferir a prática de abuso de autoridade e de infração de medida sanitária preventiva, crime esse previsto no artigo 268, do Código Penal e que se destina à tutela da saúde pública como bem jurídico.

Para além dos aspectos inerentes à falta de solidariedade e da prova inequívoca do despreparo para o convívio social, este texto propõe-se a analisar sucintamente as duas alegações levadas a efeito pelo banhista cearense. O primeiro deles diz respeito à imunidade parlamentar, enquanto o segundo é atrelado ao direito de locomoção.

A imunidade parlamentar surgiu na Inglaterra do século XVII e hoje é adotada, com maior ou menor abrangência, em quase todos os países democráticos do mundo, porquanto se apresenta como instrumento relevante para assegurar a autonomia e a independência dos parlamentares quanto a palavras, votos e opiniões proferidos no exercício do mandato. Não se trata de privilégio, mas de prerrogativa inarredável para propiciar ao parlamentar a possibilidade de argumentar e discutir temas controvertidos sem as amarras eventualmente impostas pelo establishment.

No mais, em sua acepção processual, a imunidade é estabelecida pela Constituição Federal, como item importante do Estatuto do Congressista, que, ao disciplinar que o parlamentar somente pode ser preso por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária, salvaguarda a atividade do parlamentar dos (eventuais) abusos do Executivo, mitigando-se a possibilidade de uso político dos organismos policiais.

A imunidade material, alusiva a palavras, votos e opiniões proferidos pelos parlamentares no exercício dos seus mandatos, é prerrogativa titularizada por deputados federais, senadores da República, deputados estaduais e vereadores, enquanto a imunidade processual não abrange a atuação dos vereadores. Complementarmente, assinale-se que a imunidade material circunscreve-se ao limite dos mandatos. Ou seja, nenhuma relação haverá entre o mandato do vereador de Recife que levanta palavras ofensivas em detrimento do prefeito de São Paulo, porquanto a sua função de fiscalização não se estende às ações de gestão pública em município diverso de onde exerce seu mandato.

Por outro lado, não é demais lembrar que, em julgamento recente, de março do ano passado, o ministro Marco Aurélio Mello votou no sentido de que a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. A imunidade é um direito importante, mas não é um salvo-conduto “em branco” para o parlamentar. Uma apertada aplicação de princípios hermenêuticos é suficiente para demonstrar que os direitos não são, via de regra, deferidos aos seus titulares em caráter absoluto. Aliás, após anos de estudo da nossa já combalida Carta Magna, penso que apenas o direito à continuidade do Estado, numa perspectiva Kantiana e Hegeliana, impõe-se sem ressalvas.

Na esteira dessas ressalvas, o STF, em março deste ano, por intermédio do ministro Alexandre de Moraes, ainda esclareceu que a imunidade não pode servir de anteparo para a propagação de ideias que atentem contra a ordem constitucional e o Estado de Direito.

Feitas essas considerações acerca dos desdobramentos da imunidade parlamentar, cabe aqui uma única ponderação acerca da alegação do direito de locomoção, denominado direito de “ir e vir” pelo parlamentar que ensejou as presentes linhas. O direito à liberdade de locomoção faz parte de um plexo de liberdades públicas esquadrinhadas pela Constituição Federal, sendo corolário e pressuposto de inúmeros outros direitos, e que não pode ser limitado arbitrariamente, ou seja, ao livre talante de quem quer que seja.

No caso vertente, realçando-se o federalismo sobre o qual se estrutura o Estado brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em 15/4/2020, no julgamento da ADI nº 6340, reconheceu a competência concorrente entre a União e os demais entes federados para adotar medidas restritivas necessárias ao enfrentamento da pandemia do Sars-Cov-19. Assim, legitimado pela Constituição e pelo contexto do flagelo pandêmico que já levara a óbito mais de 450 mil brasileiros, o governador de Pernambuco impôs restrição à utilização das praias, além da prorrogação da obrigatoriedade do uso de máscaras, entre outras medidas, o que foi frontalmente descumprido pelo parlamentar cearense. Resta hialina a violação de ordem legal, decorrente de restrição compatível com as circunstancias atuais, bem como a ilegalidade da conduta reativa de sua excelência.

Essas breves ponderações conduzem à percepção sensível de que os direitos (ainda que fundamentais) podem sofrer restrições, sobretudo quanto ao seu gozo, desde que haja plausível justificativa. Ilimitada, por enquanto, apenas a ignorância humana, que nega seu próprio conhecimento, e prefere estar certo do que ser feliz, por não ter se dado conta que é impossível ser sadio em uma sociedade adoecida.

José Durval de Lemos Lins Filho é especialista em Ciências Criminais, mestre e doutorando em Direito, delegado Especial de Polícia do Estado de Pernambuco, professor da Universidade Católica de Pernambuco, professor e atual diretor da Faculdade de Administração e Direito da Universidade de Pernambuco (UPE).

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