Por Adna Oliveira
Meus caros leitores, para compreendermos melhor a obra indicada, devemos entender o seu autor, toda criação carrega no peito o coração de seu criador e em cada tracejar a suas hereditariedades. Em respeito a esta aclamada senhora, chamaremos de um modo íntimo e respeitoso, o qual, em todos os seus retratos históricos lhe faltou. *”Dona” Carolina Maria de Jesus, nascida em Minas Gerais, no dia 14 de março de 1914, uma mulher negra, semianalfabeta, poetisa Brasileira, compositora, mãe solteira de três crianças, recolhedora de materiais recicláveis, tinha como hábito o vício por leitura e uma necessidade de escrever.
*DONA(HISTÓRIA). título concedido às senhoras de famílias nobres (abrev.: d. ou D.) Usado como tratamento honorífico, de que era precedido o nome próprio de mulheres pertencentes às famílias reais de Portugal e do Brasil, estendeu-se a todas as mulheres distinguidas por algum título de respeito). Seu livro quarto de despejo não é uma escrita qualquer, retrata não só suas dores e seus males, mas o sofrimento e as calamidades de toda uma classe social, registrou com maestria oras em linguagem coloquial e outras em termos rebuscados.
Como ela dizia:” É no lixo que acho meus tesouros!”, realmente o era. Todos os livros, revistas e cadernos velhos descartados pela cidade, eram salvos e guardados em seu barracão. Havia adquirido o ávido apreço pela leitura, mas ainda mais pela arte do saber, ao ter tido a possibilidade de usufruir da biblioteca de seu ex-patrão, o qual era um médico refinado, nascia a mulher que descobrirá o real significado do “poder da palavra”, seu livro era a composição de 20 diários, que retratam sua vida e o cotidiano dos moradores da favela do canindé.
O SURGIMENTO DE UMA MULHER INVISÍVEL
O jornalista* AUDÁLIO DANTAS, foi uma peça fundamental para dar voz, aquela que naturalmente havia nascido para não falar e por ironia do destino, tinha como hábito registar tudo aquilo que lhe causava revolta, tirava a voz de seu peito e registrava em papéis aquilo que na época ninguém se interessava em ouvir.
Dantas havia entrado no cenário desta história como um “jornalista verde”, com a emoção e a certeza de que poderia mudar o mundo, ou pelo menos a favela do canindé e outras pelo país, como relatado pelo mesmo em seu artigo, havia sido encarregado de escrever uma matéria sobre a favela em rápida e crescente expansão na beirada do Rio Tietê, no bairro do canindé.
E no meio da agitação da comunidade, ele encontrou ” DONA CAROLINA”, ameaçando colocar o nome de alguns causadores de balbúrdia em seu livro, chamou a atenção de Dantas, ” a negra Carolina, se colocou logo como alguém que tinha algo a dizer. E tinha tanto, que na hora desisti de escrever a reportagem.” A história da favela que este buscava, estava escrita em uns vinte cadernos encardidos, que D. Carolina guardava em seu barraco.
Assim que ele leu, concluiu que nenhum escritor ou repórter poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela, sem cortes e meias palavras, sem usar da descrição ou da polidez burguesa, uma junção de revolta, denúncias, história, política, solidão, pequenos trechos de felicidade insólita, mostrou sem medo as dores atrás da cortina, que separa o mundo feliz do mundo dos esquecidos. Com a permissão de D. Carolina, o jornalista enxugou o texto em alguns pontos, por se tratar de um diário, partes repetitivas deveriam ser retiradas para não se tornar enfadonha, mas em nada alterou a composição e foco central desta obra.
O RETRATO DA FOME
D. Carolina aprendeu pela vivência que a fome tem cora, uma personagem tão vivida e implacável, que adquiriu forma de tantas vezes que está a fez ser sentida, vista e experimentada. Em sua busca rotineira busca pela sobrevivência, como um rato em meio aos restos da humanidade, descobriu que todas as coisas do mundo – “o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a fome atingia o limite do insuportável e foi deste modo que esta enxergou a fome. Por surgir diversas vezes ” A amarela ” saiu de cena, após o tratamento que o texto recebeu e deste modo algum diminui sua importância real ou literária.
“Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos”. (lembrando que não eram raros e nem escassos os casos de anemia entre a população de baixa renda). Além de trabalhar para conseguir comprar comida, a moradora da favela do Canindé também recebia doações e buscava restos de alimento nas feiras e até no lixo quando era preciso. Em uma das suas entradas no diário, comenta: “A tontura do álcool nos impede de cantar. Mas a fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.
Pior do que a fome dela, a fome que mais doía era aquela que assistia nos filhos.
Acima de tudo, Quarto de Despejo é uma história de sofrimento e de resiliência, de como uma mulher lida com todas as dificuldades impostas pela vida e ainda consegue transformar em discurso a situação limite vivida.
O SEU PAPEL DE MULHER E MÃE, NAS CAMADA MARGINALIZADA DA SOCIEDADE
Nos primeiros capítulos de sua obra, a indulgente D. Carolina fala das constantes perseguições sofridas, esta não era bem quista e por diversas vezes maltratada com falas ferozes de suas vizinhas mal instruídas, simplesmente por ser uma mulher solteira e como ela retrata de certa forma independente.
Relata sobre a necessidade de deixar os filhos sozinhos para trabalhar e a preocupação incessante com o bem-estar deles.
trecho 18 de julho -“D. Rosa, assim que viu meu filho José Carlos começou a se implicar com ele. Não queria que o menino passasse perto do barracão dela. Saiu com um pau para espancá-lo. Uma mulher de 48 anos brigar com criança! Às vezes eu saio, ela vem até minha janela e joga fezes nas crianças. Quando eu retorno, encontro os travesseiros sujos e as crianças fétidas. Ela odeia-me. Diz que sou preferida pelos homens bonitos e distintos. E ganho mais dinheiro do que ela.”
Neste trecho é apresentada a face que ela mais abominava, a falta de respeito, educação e empatia. Gerados pelo fato de teoricamente fazer o papel da “Negra metida”, já que tais adjetivos eram utilizados devido a inveja que ela gerava ao ser um pouco mais instruída que as demais, “semi alfabetizada”, se destacava em meio às demais e este era mais um dos motivos destacados para explicar a perseguição.
Por diversas vezes passava por confrontamentos, o tratamento aplicado a ela era aplicado a seus filhos e como mãe se impunha falando e posteriormente relatando em seu diário. Em um determinado ponto reclama da falta que faz ter um companheiro para auxiliar, mas logo se conforma ao avaliar de forma racional os exemplos de parceiros e das vidas femininas a sua volta.
“Elas comentavam do fato do fato de eu não ser casada, ela não mendiga ou apanha.” – situações habituais denunciadas no livro, maus tratos a mulher e a subserviência movida pela necessidade.
“Não invejo a vida de casada das mulheres da favela, que levam vida de escrava. Não me casei e nem estou desejosa disto.” – em seu diário é retratado apenas dois envolvimentos amorosos.
Carolina Maria é mãe de três filhos e dá conta de tudo sozinha. Apesar de todo o esforço, muitas vezes sente que não dá conta.
“Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede de realizar os nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”
A IMPORTÂNCIA DE SUA CRENÇA
Nesse contexto de frustração e extrema pobreza, é importante sublinhar o papel da religiosidade. Diversas vezes, ao longo do livro, a fé aparece como um fator motivador e impulsionador da protagonista. “Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado”. Dona Carolina encontra na fé força, mas também muitas vezes explicação para situações cotidianas.
O TRABALHO E A FAMÍLIA
Quarto de Despejo explora os meandros da vida dessa trabalhadora mulher e transmite a dura realidade de Carolina, o constante esforço contínuo para manter a família de pé sem passar maiores necessidades:
“Saí indisposta, com vontade de deitar-se. Mas, o pobre não repousa. Não tem o privilégio de gozar de descanso. Eu estava nervosa interiormente, maldizendo a sorte. Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, uma lata, e lenha.” Por ser a única a prover o sustento da família, Carolina trabalha dia e noite, por vários dias como rotina chegava em sua casa a meia-noite ou saia durante a noite para recolher, assim como sempre despertava cedo para buscar água na torneira comunitária.
Os seus meninos, como ela costuma chamar, passavam muito tempo sozinhos em casa e vira e mexe eram alvos de críticas da vizinhança que dizem que as crianças “são mal-educadas”.
ANÁLISE DE QUARTO DE DESPEJO
Quarto de Despejo é uma leitura dura, difícil, que expõe situações críticas de quem não teve a sorte de ter acesso a uma mínima qualidade de vida. Extremamente honesto e transparente, vemos na fala de Carolina a personificação de uma série de falas possíveis de outras mulheres, homens, crianças e adolescentes que se encontram igualmente em uma situação social de abandono. Devido ao exaustivo compromisso, com a verdade contida nestas páginas, Carolina precisou mudar de bairro e de casa. Porém não foi bem recebida na nova vizinhança, devido ao racismo na época, não tendo como se encaixar em nenhum grupo social, os seus a rejeitava e os não seus jamais a quisera.
O ESTILO DE ESCRITA DE D. CAROLINA MARIA DE JESUS
A redação de Dona Carolina – a sintaxe do texto – por vezes foge ao português padrão e por vezes incorpora palavras rebuscadas que ela parece ter aprendido com as suas leituras.
A escritora, em diversas entrevistas, se identificou como uma autodidata.
Em termos textuais vale sublinhar que há falhas como a ausência de acento e erros de concordância. Carolina transparece o seu discurso oral e todas essas marcas na escrita ratificam o fato de ter sido efetivamente a autora do livro, com as limitações do português padrão de quem não frequentou integralmente a escola.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO COMO CRÍTICA SOCIAL
Além de falar sobre o seu universo pessoal e os seus dramas cotidianos, o Quarto de Despejo também teve importante impacto social porque chamou a atenção para a questão das favelas, até então um problema ainda embrionário na sociedade brasileira.
Foi uma oportunidade de debater tópicos essenciais como o saneamento básico, a recolha de lixo, a água encanada, a fome, a miséria, em síntese, a vida em um espaço onde até então o poder público não havia chegado.
Muitas vezes ao longo dos diários, Carolina transparece o desejo de sair dali: “Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente” Com relatos vividos , vemos o resultado da miséria social impregnada em cada figura descrita, não eram apenas seres carentes de educação, mas necessitados de qualidade de vida e como todos os filhos desta mãe pária carentes de ter um direito real à vida , ultrapassando o limiar da sobrevivência.
Este livro abriu os olhos de inúmeras pessoas , que nos tempos de D. Carolina não enxergava as mazelas sociais, ver que os filhos da comunidade tinham mais do que cor e tipos distintos …”tinham almas” ..
Pode-se concluir que, ” quarto de despejo “é mais do que uma obra, é a livre expressão de um ser aprisionado, que achou na literatura asas para voar e como naquele tempo a arte se torna a melhor saída para os aprisionados, seja na escrita, pintura, poesia, música ou dança.
É nesse universo que milhares de D. CAROLINA estão a perder seus talentos, por um simples fator a ausência de oportunidade, o canto dos aprisionados tem sempre um som abafado, porém, esta ilustre senhora emergiu à superfície da sociedade, para mostrar que ter certificados nem sempre é uma demonstração válida do saber e que a experiência é por deveras um professor audacioso e exigente.
(“POR TODOS AQUELES QUE NÃO TINHAM VOZ E HOJE TEM, E POR AQUELES QUE NÃO POSSUEM ISTO AINDA, MAS UM DIA TERÃO”. MEUS MAIS SINCEROS AGRADECIMENTOS”). CONTRARIANDO QUALQUER POSSIBILIDADE PRÉ-ESTIPULADA, VOCÊ GRITOU AO MUNDO QUE SEU LIVRO SERIA IMPRESSO E LIDO, INCRIVELMENTE O MUNDO TE OUVIU, EM 15 IDIOMAS DIFERENTES E FOI PUBLICADO MAIS DE 100 MIL EXEMPLARES.